08/01/2009

Homenagem a Joaquim Castro Caldas (1956 - 2008)

Só agora, através do blogue "O País das Mil Ervilhas", eu soube da morte do poeta, diseur e crítico Joaquim Castro Caldas.

Célebres eram as suas noites de poesia nas segundas feiras no Pinguim Café no Porto, mas também na vida nocturna lisboeta ele deixou marcas: em 1995-1996 no Bar do Chapitô (noites de poesia nas quintas feiras na companhia de Paulo Campos dos Reis) e mais tarde num bar perto do Conservatório Nacional no Bairro Alto.

Devolução dos cravos

"um menino uma vez
o tal que há em nós
sujo de liberdade
todo na ponta dos pés
tentou enfiar um cravo
no cano de um G-3

hoje um homem talvez
menino velho sem voz
democrata que se farta
mete o cravo na culatra
e puxa-a de pé atrás
com medo que o seu país"

(do seu livro "Convém Avisar os Ingleses", Quasi edições, 2002)

Um dos seus maiores sucessos como "diseur" era a declamação do poema "As Velhas" http://osabordacereja.blogspot.com/2007/01/as-velhas.html .

Mas para mim pessoalmente o cúmulo foi a sua performance sobre uma carta que em 1987 dirigiu à Fundação Gulbenkian, um texto que não perdeu nada da sua actualidade...

"Subsídio para o suicídio".

"Um dia - como quase todos - acordei sereno estremunhado à noite. Estava farto do mundo em geral e de Portugal em particular. A cortesia era: vou-me matar. Saiu-me isto mas houve uma resposta porreira do outro lado. O que é mais divertido é que a comunicação social estrangeira percebeu que eu estava a brincar.
Portugal não."

J.C.C.
Rua da Lapa XX-X,
1200 Lisboa

Ex.mo Sr.
De certa forma desenquadrado de e epidermicamente hostil ao tão inculto Surrealismo nacional (movimento irreversível que consiste em Surrar - O - Realismo às Minorias Absolutas através das Maiorias Anónimas) e na fiel linha lunática, tradição suicida e corrented'ar estética da Poesia Portuguesa, venho por esta brevíssima e humilde missiva solicitar à Fundação Gulbenkian, sempre tão prestável e atenta, uma urgente audiência (na pessoa da V. Ex.a com quem, como tenho vindo ao longo dos anos a constatar e sem qualquer lisonja hipócrita, as novas gerações mais prezam o diálogo civilizado e o respeito pela inteligência) audiência essa destinada à concessão de um mísero (face aos vossos fartos recursos) subsídio que, não sendo por certo habitual pedir nem provar, muito honraria o brilho da vossa já quase secular instituição, contribuindo para uma nobre, sã, airosa, decidida e eficaz saída do meu penoso caso lírico pessoal.

Assim sendo, e não ousando abusar muito mais da infinitamente piedosa e tolerante curiosidade de V. Ex.a, passo d'imediato a expor o detalhado rosário de inconfessáveis e vis matérias primas ou sinistros objectos que me propus atribuir um (eventual) orçamento: um revolver (50 mil escudos); munições adequadas (20 mil escudos); um socrático litro de sicuta, um cálice de cobre e uma rodela de manga, para a hipótese de a primeira tentativa se amedrontar (P.V.); algum cianeto e bastante nitroglicerina, para a hipótese da segunda tentativa não passar de um romântico aperitivo ou de uma inconsequente chantagem moral (preço a regatear); cremação do corpo e lançamento de cinzas ao Tejo (500 mil escudos); cachet de 20 palhaços da Companhia de Circo de Lisboa para a citada ceremónia fúnebre (250 mil escudos); cachet da Banda dos Bombeiros Voluntários que chegarem primeiro executando a canção das Crianças Mortas de Mahler, na ocorrência (500 mil escudos, com descontos para poetas e afins); arredondando a coisa deve andar lá perto dos 1000 contos, o que é isto nos tempos que vai correndo? Convenhamos que toda a Morte que se estime não olha a meios para dignificar os seus fins...

Esperando contribuir coma minha modéstia para uma lufada na monotonia da correspondência de que, desejo temê-lo, V.Ex.a será vítima, e desde já agradecendo o vosso empenho generoso, sem mais por ora me subscrevo, com admiração pela paciência de santo de V. Ex.a, exalando confiança, irradiando ansiedade.

Joaquim Castro Caldas



E aqui a resposta....

Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa - 1, PESSOAL

Ex.mo Senhor Joaquim Castro Caldas
Rua da Lapa XX/X
1200 Lisboa

Lisboa, 31 de Julho 1987

Caro Senhor,

Tenho a honra de acusar a recepção da carta da Vossa Senhoria, sem data mas com lata, na qual solicita subsídio que lhe permita morrer com pompa (e não troco os bb pelos pp) e circunstância.

De início interroguei-me sobre a questão de saber em qual dos quatro fins da Fundação Gulbenkian (artísticos, educacionais, científicos e caritativos) tal desiderato se podia inscrever, mas rapidamente cheguei à conclusão de que em qualquer deles, ou em todos concomitantemente, se inscreveria.
Pensei então em pedir o aliás douto parecer da Agência Barata (se bem que intuitivamente eu adivinhasse que ela qualificaria o orçamento apresentado de sumptuário), mas referi, antes disso, procurar nos nossos arquivos antecedentes pedidos para o mesmo fim e verifiquei sem surpresa que - dada a premente necessidade de reduzir as nossas despesas - todos os numerosos apoios financeiros requeridos para viagens alternativas para Inferno, Céu ou Purgatório foram invariavelmente negados e, como é óbvio, não me parece curial a criação de precedentes.

Nestes termos, sinto informar a V. Ex.a que não é possível atender a solicitação que me dirigiu, ainda que lamente o consequente facto de ficar condenado a viver mais alguns anos. A não ser que - se me permitir a sugestão - opte pela solução da corda, do gancho e do banquinho, solução que, por ser barata, poderá até ser apoiado pela Secretraria de Estado da Cultura. Ou ainda (porque não?) - e eis uma variante absolutamente gratuita - a solução do lago do Campo Grande, desde que obtida prévia autorização do Senhor Eng. Nuno Abecassis.

Entretanto sou de V. Ex.a
Atentamente até ao Outro Mundo,
e muito mais depois,

Pedro Tamen


3 comentários:

Anónimo disse...

Boas noites que passámos juntos no Chapitô, alternando poesia e música. Lembras-te Rini?

Rini Luyks disse...

Claro, Rui, por isso fiquei há uns dias em estado de choque ao ouvir a "notícia" (já foi há quatro meses que Joaquim desapareceu...). Também estive uma vez com o elenco do Bando numa noite dele no Café Pinguim no Porto, quando estreámos lá "A Balada de Garuma" em 1996, foi muito bom também.
O Joaquim era um poeta saltimbanco.

Helena Velho disse...

Linda homenagem, Rini!
Mas o Pinguim continua...