16/02/2009

Narizes


O meu amigo Fernando Mora Ramos enviou-me este texto que, com a devida autorização, vou 
postar aqui:


NARIZES

"Até me parece infantil esta do nariz, mesmo que na resolução coxa do cartaz o esticado do nariz deixe muito a desejar, sem requinte, desenhado não como inexplicável mistério de crescimento exponencial da carne, porventura exercido sob alçada de um poder da verdade a castigar mentiras, mas esteticamente aposto como uma prótese, miserável quanto a flor de plástico na iludida espera dos labores da abelha e virtudes do pólen fertilizador.

Seria a meu ver menos ofensivo para o nariz e também para o feliz contemplado, se o nariz de que se fala fosse de clown – quem não gostará, uma vez na vida, de mudar de nariz, mesmo num episódico Carnaval na política espectáculo?

Só mesmo na personagem de Gogol o nariz foge do dono e este desespera, a identidade perdida. Sem nariz, nem sequer estatuto de proletário avant la lettre, nobreza leninista por vir, nem mujique, nada, um vácuo de ser. E como o horror ao vazio nos determina mais que o medo do chefe, eis a tragédia metida a farsa: “sou ou não sou, diz-me lá nariz meu que partiste”. Acresce no caso gogoliano que ELE vem com bigode, bilateral e promontório plantado a meio do rosto, ou melhor, do seu desaparecimento, um nariz e peras, protagonista. 

Embora em Portugal se diga depreciativamente que tal tipo é um palhaço, constituindo isso ofensa, um nariz de palhaço ao lado de um de Pinóquio fazem parelha, casal bucha e estica, complemento de extremos desiguais irmanados. Portanto o Pinóquio também é um Clown, mas não sabe e não traz com ele geneticamente a graça que baptiza o outro. 

É das coisas burras que cá se faz, essa depreciação do palhaço – és um palhaço pá – já que é arte subtil e tradição de origens ricas, uma delas nossa. O bobo da corte, assim como o parvo vicentino, cá está, são arautos do que é necessário que se saiba mas não se deve dizer, que o rei vai nu – e nisso o nariz ajuda, porque mascara quem o diz, anonimato que evita policiamento e permite dizer sem peias, ou, outra hipótese, dirige a verdade na direcção para que aponta, míssil, como o nariz antiquíssimo do Capitão da Commedia dell’arte. Neste caso, todo perfil. Il Naso mais que um estatuto é uma máquina de guerra.

Nos antípodas destes, um nariz clandestino, o de Cyrano, capaz de suspiroso verbo e no amor inexcedível, amante dedicado mesmo que interposto alcoviteiro solidário, interessado sem interesses, como não há nesta era da comissão. E este é talvez o mais nobre de entre os narizes, tocado pela flor da beleza. Não há semelhante localmente, peritos em saudade e não em amor prospectivo.

É extraordinário como certos narizes se relacionam com a verdade e com verdades sociais: no caso do clown, o mundo de pernas para o ar baseado numa vocação do apego ao literal retrata o podre das hierarquias, verdade oficial incutida ou imposição inseminada ideológica abrangente.

O nariz do parvo vicentino não é reconhecível à primeira. Infelizmente como tipo não tem o estatuto ímpar da marca portuguesa, mais fidalgote na pose e único concorrente do Arlequim italiano. Do fidalgote, e das Beiras (eles lá são aos molhos), diz-se: “Assim que bafejais logo me cheirais a nabos”, responde quem os vê dentro sabendo como desejam Lisboa e andares nas Avenidas. O parvo vicentino é só nariz, espirra sem sentidos que podem ser lidos como matriz do absurdo, cócegas no calcanhar de intelectuais de setentas ou de noventas, nada a ver com Beckett, criador do supremo clown, homem detrito, sem qualidades.

Como amante das clowneries, memória de Fellini e também do russo Popov – vi-o no Coliseu – diria que se há quem não tenha qualquer possibilidade de ser tocado pela graça genuína do clown é certamente o Primeiro-Ministro. Nem com o nariz de Pinóquio, sem gag, ou de um gag só. Para pior só mesmo o Presidente Cavaco. Nenhum deles se ajeita. Já falando da figura do palhaço rico, isso sim, seriam candidatos possíveis num casting aberto. E já agora que se fala muito de ricos, espero que os taxem também no corte das deduções, aos palhaços ricos. Os palhaços pobres vão rezar por isso."

Fernando Mora Ramos

Escrevinhador

4 comentários:

Rini Luyks disse...

O último parágrafo (bom texto!) faz-me lembrar um post (3 de Janeiro 2009) e troca de comentários no blogue "A Face Oculta da Terra", sobre a mensagem do fim do ano 2008 do PR Cavaco Silva: "Nem uma palavra sobre Portugal, sobre os portugueses, a cultura, o património".
No português (mais do que noutras línguas, parece-me) o sentido da denominação "palhaço" depende do contexto em que a palavra é usada e/ou a entoação com que é pronunciada.
Na inauguração de Lisboa Capital Europeia da Cultura 1994 participei num espectáculo que teatro "O Bando" montou em frente ao Coliseu: 150 actores, cantores e músicos, todos vestidos de palhaço (com nariz vermelho).
Chegou um cortejo de carros blindados com membros do Governo (maior contraste de ambientes era difícil de imaginar) e do primeiro carro saiu rapidamente PM Cavaco Silva em direcção às portas do Coliseu. Mas não conseguiu evitar um banho de multidão dos palhaços a scandirem : "Pa-lha-ço, pa-lha-ço"!
Foi o momento supremo da noite!

Rui Mota disse...

Rini,

Não conhecia o episódio do Coliseu, pois, ao tempo, vivia na Holanda. Penso que até o Fellini gostaria de ter assinado tal encenação. Fantástico.

Rui Mota disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rini Luyks disse...

Então não é!!??
Para não haver mal entendidos, Rui M., a encenação dos palhaços estava programada e até subsidiada, o escandir "pa-lha-ço" é que não!
Aqui tem de ser referido (sem pedir o consentimento do próprio, claro) o nome do "Bandista" que teve essa ideia genialmente irreverente: foi Raul Atalaia.
Mas fomos todos "culpados" e de bom grado!