19/12/2006

Cage, o silêncio e metafísica suficiente em não pensar em nada…

foto de Patrícia Poção


A pedido de várias famílias aqui fica o texto que escrevi para o programa do espectáculo "Por Detrás dos Montes" do Teatro Meridional, para o qual compus a música que interpreto ao vivo.

“Escrever sobre música é como dançar sobre arquitectura.”

Mais do que os instrumentos, as melodias ou as canções, interessou-me sobretudo tentar captar a energia, o sentir, o pulsar das gentes e das terras transmontanas. Porque acredito que aquilo que melhor define um sítio e quem lá vive é muitas das vezes o indizível e o invisível.

A música deste espectáculo foi criada sob o signo de John Cage. Não tanto da sua música mas das suas ideias acerca do silêncio e do som. De como qualquer evento sonoro pode ser ouvido como música dependendo apenas do modo como o escutamos. Se entendermos o tempo e o acaso como uma trama de infinita resolução poderemos então ouvir as gotas de chuva, os carros ao longe e o som da lapiseira a riscar o papel como uma estrutura musical sensível e ordenada.

No meu trabalho para teatro cada vez vejo menos sentido na distinção entre música e espaço sonoro. De novo, a questão coloca-se apenas na forma como ouvimos. Os instrumentos e objectos sonoros que utilizo não se regem por uma hierarquia. Um saco de plástico pode ter mais protagonismo que uma viola. Um garfo pode ser o solista.

O povo mostrou-nos tudo isto antes dos teóricos. Sem ensaios. Uma cantilena de pedreiro tem tanto de melodia como de grito de dor. Um aboio é metade voz e metade chocalhos.

Numa época em que a música invadiu quase todos os espaços públicos e privados como um vírus sem vacina e em que parecemos perder de dia para dia a capacidade de realmente ouvir, resta-nos tentar escutar o silêncio. Pois é aí que tudo acontece.

“O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele.”

7 comentários:

Anónimo disse...

a "metafísica suficiente em não pensar em nada" deveria estar entre aspas...

Fernando Mota disse...

Talvez. É apenas uma questão gráfica, não dividir as três ideias do título. Parto do princípio que a grande maioria dos portugueses sabe que a última parte do título e as últimas frases do texto são citações do mesmo poema. E como deixei assim no programa...

Anónimo disse...

O que dizer do espectáculo? Foi muito intenso na óptica do espectador da mesma maneira que o deve ter sido (desculpem a graçola informática) na óptica do utilizador, ou seja, entre os intérpretes.

Felizmente que não enverdou por uma linha de: “vamos lá à província como quem vai a um zoo e vamos perceber como é que a coisa funciona...” Nada disso. Há muita pesquisa, sentido de observação, astúcia, e claro, talento, o que não surpreende vindo desse Meridiano.

Não tem mal nenhum, nem se espera à partida, que um pastor transmontano conheça John Cage, da mesma maneira que também não há pecado em evocá-lo num ambiente puro e sem preconceito como este, desde que seja feito com mestria.

É este o caso. Parabéns.

Fernando Mota disse...

Obrigado pelas tuas palavras, Peter, e por teres acedido ao pedido do meu parceiro de blog em deixá-las aqui. Por falar nele aproveito para corrigir uma gralha no seu último post. Onde se lê "boas ou más", deve-se ler "boas ou estupendas". Obrigado.

Anónimo disse...

Pensar é Destruir

O homem vulgar, por mais dura que lhe seja a vida, tem ao menos a felicidade de a não pensar. Viver a vida decorrentemente, exteriormente, como um gato ou um cão - assim fazem os homens gerais, e assim se deve viver a vida para que possa contar a satisfação do gato e do cão.
Pensar é destruir. O próprio processo do pensamento o indica para o mesmo pensamento, porque pensar é decompor. Se os homens soubessem meditar no mistério da vida, se soubessem sentir as mil complexidades que espiam a alma em cada pormenor da acção, não agiriam nunca, não viveriam até. Matar-se-iam assustados, como os que se suicidam para não ser guilhotinados no dia seguinte.

Fernando Pessoa,
in 'O Livro do Desassossego'

Anónimo disse...

Bela Merda

Anónimo disse...

Eu fui sexta. Não gostei nada.
Achei bonito mas despido de conteúdo. As avulosas "mensagens" sensoriais vão-nos guiando mas não nos levam a lado nenhum.
No fim... fica o belo trabalho musical e um ou dois momentos bem conseguidos.
Ao contrário do Espectáculo "À manhã" que me deixou rendida.