18/12/2006

Arte e Entretenimento

Nos dias de hoje, com a globalização, a massificação do consumo e o crescimento exacerbado da indústria do lazer, torna-se cada vez mais difícil distinguir o entretenimento da arte. O ideal consumista converteu a arte num produto de estética populista, fruto da cultura do entretenimento e formatado à lógica do espectáculo.
A lei do rentável foi matando a capacidade de discernimento do indivíduo, tornando-o apenas em consumidor ou consumível .
"Arts and Entertainments” - Os motores de busca na internet teimam em colocá-los sempre no mesmo directório e o facilitismo da estandardização faz com que essa lógica se vá apropriando do imaginário colectivo.
Ambas fazem parte da cultura universal mas com papeis substancialmente diferentes na sua capacidade de intervenção no indivíduo, na sociedade e, consequentemente, na História.

Muitos animais se divertem e entretêm mas apenas um faz arte – o Homem.
O entretenimento (sem as mais valias do convívio, da pedagogia, da ginástica, etc.) está associado apenas ao prazer e a arte vai muito para além disso, é muito mais abrangente e está inevitavelmente vinculada à inteligência, à intuição, ao raciocínio, ao sentimento, à imaginação, à expressão e a tudo o que nos transcende.
Jogar consola com o meu filho é entretenimento. Olharmo-nos nos olhos e sentirmos o amor que nos une, compreendendo e realizando a importância desse amor, é arte.
Um diverte, a outra sensibiliza, emociona, perturba e faz pensar, tocando, modificando, sendo dinâmico e vivo, fazendo evoluir.
Por vezes tocam-se, misturam-se, como o azul e o amarelo que dão verde. Mas não deixam de ser coisas completamente distintas.

Entreter é o espaço entre o que se teve e o que se vai ter, é o tempo em que não se tem nada, em que não se é nada, em que não se existe. Logo é necessário passar esse tempo para outra coisa ter, ser ou existir por nós. Recorre-se então ao passatempo que é uma espécie de encher um copo sem fundo, onde se tem uma sensação de satisfação e a ilusão da acção em si. Passar o Tempo é a coisa mais estúpida que se pode (não) fazer na vida. Simboliza a inutilidade por excelência e é sinónimo de inactividade e improdutividade. É queimar tempo de existência. Não no sentido da meditação e da introspecção mas no sentido da passividade no seu estado mais estupidificante.
Entretenimento é darem-nos algo já feito quando nós não estamos a fazer nada, é darem-nos uma comida já mastigada, ingerida e digerida...

20 comentários:

Anónimo disse...

Estimado Rui
Compreendendo o que quer dizer, embora considere que a sua argumentação poderá não ser a mais adequada, pois o fundamento não ajuda! A fruição da arte daquilo a que nos habituamos a chamar cultura deve ser um entretenimento, i.e., termos necessidade de buscar a sua fruição e dela tirarmos prazer (já agora, atenção ao conceito de prazer, é que pode ser melancólico ou até doloroso, mas sempre enriquecedor e gratificante).
O problema é exactamente ao contrário: porque é que a cultura (com letra grande) não entretem. Não entretem porque, como o Rui bem diz, as crianças e os adolescentes são desde tenra idade formatados para consumir a tal dita de light, desde logo através do audiovisual que, por muito que nos custe enquanto pais, é já responsável por mais de 70% dos valores que os nossos filhos assimilam!
Receita? Pois, Rui, lá está, não será través da excessiva oferta de espectáculos de qualidade aos quais as crianças não vão porque não querem saber e os pais também não ou não sabem já fazer essa distinção. É aqui que entra a escola…
A escola não poderá continuar a ter como objecto a Educação de eduquês, nem sequer o ensino ( transmissão de conhecimento). A escola deve ter por objecto a aprendizagem dos alunos e, para que tal aconteça, é necessário que a Escola seja eleita como o PALCO de TODA A APENDIZAGEM! É preciso que haja lá teatro clássico, leitura de clássicos, espectáculos de música clássica.., é imperioso que a CULTURA vá e esteja sempre na ESCOLA e não só nas salas de espectáculo.
Nesta perspectiva, a de que a aprendizagem é o foco da escola há muito trabalho a contratar aos artistas para o apresentarem nas escolas de todo o país, aliviando-os que carga negativa do subsídio e, remunerados que ficarão, poderão alcançar estofo financeiro para se apresentarem publicamente por sua própria conta e risco em domínios mais experimentais, que são absolutamente necessários para o seu desenvolvimento e para público mais exigente.

Rui Rebelo disse...

Caro Carlos,

Em primeiro lugar deixe-me dizer-lhe que é um prazer discutir este assunto consigo.
Por ser filho de actriz, estou ligado ao teatro desde que nasci. Apesar de ser músico de formação a minha actividade profissional tem-se desenvolvido maioritariamente no teatro. Sou também co-fundador da companhia portuguesa que faz mais itinerância nacional e internacional, com prémios, sala própria com taxa de ocupação de 90% e receitas suficientes para ser auto sustentada, mesmo quando parte dessas receitas vão para a área social.
Sabe de que companhia falo?
É verdade que fazemos mais teatro fora do país do que cá dentro mas ainda Outubro estivemos no festival cómico da Maia com 800 pessoas na sala. Fazemos um teatro direccionado para público jovem com o objectivo de formar público e a esperança que a nossa criatividade não envelheça.
Portanto, como vê, utilizamos o diminuto dinheiro público que temos da melhor forma possível e ainda representamos muito bem o país quando temos prémios e sucesso nos festivais internacionais nos quais participamos.

Estes anos todos de estrada e vias aéreas ensinaram-me que o teatro não se deve levar às escolas mas as escolas devem ser levadas ao teatro, pois o simples acto de ir ao teatro e o comportamento e o respeito que se devem ter, são já uma forma de educar o gosto pela arte. Para não falar das inexistentes condições técnicas da grande maioria das escolas para acolherem espectáculos. Claro que se podem fazer acções de formação, leituras, audições de música, expressão dramática, etc. Mas espectáculos concebidos para teatros, na minha opinião, não.
Dizia no meu outro comentário em tom de verde que a arte e o entretenimento podem coexistir. Os espectáculos com que viajo têm bastante entretenimento. São comédias. Mas o objectivo principal não é entreter ou divertir, é ginasticar a criatividade de quem os vê, apelar à sua inteligência, à sua imaginação, aos seu sentidos numa proposta honesta, transparente e despretensiosa . Mas, acima de tudo, o objectivo não é fazer dinheiro (apesar fazermos algum).

Isto tudo para para fundamentar a minha legitimidade para falar dos espectáculos do Sr La Féria e dos subsídios do estado.
O objectivo da McDonalds é fazer dinheiro ou boa comida? Claro que para os meus filhos é a melhor comida do mundo. Sabe bem, dá-lhes prazer comer. Mas será que lhes faz bem? Quando tinha a idade deles tinha o mesmo prazer a comer fruta arrancada directamente da árvore...
Não sei o que é que a McDonalds põe na comida para que as crianças (e não só) gostem tanto e quase se viciem, bloqueando o gosto por outros sabores, mas sei o que o Sr La Féria faz para entreter tanta gente... a resposta está nos sinónimos de entreter.
Entreter: deter, paliar (com promessas); enganar; recrear; divertir; distrair; suavizar.
O resto é atirar areia para os olhos e partir do principio que as pessoas não sabem fazer nada dando-lhes tudo feito. O que causa um efeito de satisfação de quem nada fez mas comprou feito. Há o pronto a comer, o pronto a vestir e o pronto a assistir...

Para acabar digo apenas que não sou contra a existência da McDonalds e do sr. La Féria desde que não contribuam para o desaparecimento progressivo da boa comida e do bom teatro (quero dizer da comida saudável e do teatro inteligente).

Anónimo disse...

Pois então eu gosto mais do entretenimento do que da arte. gosto do passatempo e de estupidificar. Não necessito evoluir e adoro que façam tudo por mim... e estou-me a cagar para o que vocês dizem.

Rui Rebelo disse...

parabéns. o sr anónimo deve ser feliz. pelo menos demonstra ter espírito crítico o que me faz crer que não acredita naquilo que escreveu. mas é sempre benvindo.

Anónimo disse...

rui,
belo pensamento. espero por mais. não tenho nada a acrescentar.

Anónimo disse...

A arte está a sofucar com a praga do consumismo fácil, do pronto a consumir. E o que se pode fazer. Educação? Boicote? Terrorismo?

"não se pode extreminá-lo?"

Vou ficar atento ao anacruses.

Anónimo disse...

Cultura

É um fenómeno eterno: a ávida vontade vai sempre encontrar um meio de fixar as suas criaturas na vida através de uma ilusão espalhada sobre as coisas, forçando-as a continuar a viver. Este vê-se amarrado pelo prazer socrático do conhecimento e pela ilusão de poder, através do mesmo, curar a eterna ferida da existência; aquele vê-se envolvido pedo véu sedutor da arte ondeando diante dos seus olhos; aquele, por seu turno, pela consolação metafísica de que sob o remoinho dos fenómenos continua a fluir, impreturbável, a vida eterna: para não falar das ilusões mais comuns, e talvez mais vigorosas, que a vontade tem preparadas em qualquer instante.
Aqueles três níveis de ilusão destinam-se apenas às naturezas mais nobremente apetrechadas, nas quais a carga e o peso da existência são em geral sentidos com um desagrado mais profundo e que podem ser ilusoriamente desviadas desse desagrado através de estimulantes seleccionados. É nestes estimulantes que consiste tudo o que chamamos cultura.

Friedrich Nietzsche,
in 'O Nascimento da Tragédia'

Rui Rebelo disse...

obrigado pela citação.
mas pedia aos anónimos que mesmo sem se identificar diferenciassem a forma de assinar pois assim não sabemos que anónimo é. proponho anónimo007 anónimoY.
agradecido

Rui Rebelo disse...

estranho...

nem o dr contratempos nem o palhaço do xadrez comentaram este post?!?

Rini Luyks disse...

Olha, esta discussão filosófica é muita fruta para um simples palhaço (o que posso dizer é que o nome de Nietzsche está bem escrito, numa citação na estação do metro Parque falta o s).
Ao contrário do Rui eu não nasci no seio de uma família artística: a minha mãe foi doméstica aos 14 anos, o meu pai lavrador da terra aos 12... Neste contexto não é muito menos do que um milagre que eu tive a oportunidade de tocar um Präludium de Bach também aos 12 anos (vejam um comentário meu ao post de 20-12-'06, aquele com bostas de ruminantes)! Onde é que os meus pais foram buscar a ideia que isto era importante para mim sem eles próprios terem as referências culturais? Não sabiam empiricamente, mas sentiam. Na semana passada a minha mãe mandou-me uma carta com um presente de Natal muito especial: a letra de uma música que ela cantava há 50 anos quando fazia as camas. "Twee ogen zo blauw" era a versão holandesa de uma canção napolitana "Vieni sul mar, vieni a vogar, sentirai l'ebbrezza del tuo marinar". Cantei isto há pouco tempo, acompanhado por acordeão e clarinete, num restaurante italiano em Lisboa. Entretenimento ou arte? It depends where you're coming from...

Rui Rebelo disse...

Caro Palhaço do Xadrez,

O entretenimento pode ter arte e a arte pode ter entretenimento mas não me parece que dependa das origens. As minhas, ainda que no meio das artes e do entretenimento, são bastante modestas. O que me ensinou que a arte não é só para os "bem nascidos".

Na minha opinião a sua intrepretação de "Twee ogen zo blauw" num restaurante italiano deve ter sido uma manifestação artística como resposta a uma solicitação de entretenimento, assim como os seus comentários neste blogue.

Mas concorda comigo que dificilmente a pura habilidade fará arte quando o propósito é só o ouro...

Rini Luyks disse...

Pimba!...está certo!
Também, claro, alguma coisa mudou em meio século em termos da acessibilidade da cultura...Mas continuo a gostar da ideia de o artista ir ter com o público, sempre serei artista da rua.

Anónimo disse...

Boa, boa.
A conversa já arrefeceu.
esgalha mais um post polémico rui. este discutiu-se mais fora do teu blogue do que aqui apesar de ter sido lançado por ti.

Anónimo disse...

"Se tivéssemos uma verdadeira vida não teríamos necessidade de arte. A arte começa precisamente onde cessa a vida real, onde não há mais nada à nossa frente. Será que a arte não é mais do que uma confissão da nossa impotência?"

Richard Wagner

___________________________________

"A arte é a mais bela das mentiras"

Claude Debussy

Rui Rebelo disse...

Caro anonymous, ou prefere que o trate por anónimo das citações?
parece-me o mesmo que deixou comentários sempre em tom de citações. Se assim for poderia começar a assinar "citador" pois continua na mesma anónimo.
Confesso que gostei mais das outras citações pois tinham mais a ver com o post.
Digo isto porque a biografia destes dois compositores citados é demasiado complexa para se poder comentar frases descontextualizadas. Principalmente o sr Wagner que fez afirmações contraditórias ao longo da sua vida. Um dia posso fazer um post apenas baseado na sua correspondência com Nietzsche, também já aqui citado, julgo que por si.

cumprimentos e apareça sempre.

agradam-me bastante as suas citações.

Anónimo disse...

Muito Bom!!!

Anónimo disse...

belíssimo texto. parabéns.

Anónimo disse...

Nem mais, Rui. Nem Mais!

Anónimo disse...

Rui

Primeiro gostaria de elogiar o seu texto. Formidável!

Acredito que a cultura da industria foi algo inevitável. Estamos inseridos em um contexto industrial, voltado ao lucro, a organização burocrática. A arte não fugiria dessa realidade. Infelizmente

O papel da arte enquanto um espaço no qual o indivíduo pode intervir como você disse, um indivíduo construtor da história, capaz de se dialogar por via de um transito entre a familiaridade e o estranhamento de si mesmo com o mundo, de se confrontar com suas próprias contradições, e por isso mesmo, capaz de requestionar suas próprias verdades, enfim, esse papel da arte submetido a industria perde tudo isso.

No entanto, não há como negar que para que um grupo se consolide, ele necessita criar redes de relações ente os seus membros e que essas redes se organizam no tempo. Apesar de haver uma industria cultural matando o tempo enquanto um processo continuo de experiências, de memórias e de humanização do induviduo enquanto totalidade do seu ser, não há como negarmos que existem compreensões que são filtradas, compartilhadas e recriadas por determinados meios, mesmo sabendo que esses meios se sumbetem a industrialização da arte. Pelo fato de existir sentidos no homem, a arte, a cultura em geral estará sempre se recriando.

Contudo, concordo com você. Acredito que a forma como os homens passaram a se organizar em suas relações de trabalho provocou esse tipo de comportamento do indivíduo diante da realidade em geral, ou seja, um indivíduo acomodado e constantemente em busca da serialidade, do mero prazer, do hedonismo, da negação do estranhamento, inimigo da provocação. É a arte apenas fazendo uma extensão e complemento da cronometragem enfadonha e produtivista que marca a economia de um capitalismo submetido a um ritmo técnico-industrial.

Vina TorTO

VISITE

www.movimentotorto.com

Anónimo disse...

Bom dia!

Rui, muito boa a discussão... seu texto está curso, entretanto conciso. Quando se fala sobre Arte, aparecem muitos pseudointelectuais com manias vanguardistas querendo confrontar. Muitos acertam, mas a maioria erra por falta de argumentos que são adquiridos através de vivência, leitura e conhecimento.