"Somos cinco numa cama. Para a cabeceira, eu, a rapariga, o bebé de dias; para os pés, o miúdo e a miúda mais pequena. Toco com o pé numa rosca de carne meiga e macia: é a pernita da Lina, que dorme à minha frente. Apago a luz, cansado de ler parvoices que só em português é possível ler, e viro-me para o lado esquerdo: é um halito levemente soprado, pedindo beijos no escuro que me embala até adormecer. Voltamo-nos, remexemos, tomados pelo medo de estarmos vivos, pela alegria dos sonhos, quem sabe!, e encontramos, chocamos carne, carne que não é nossa, que é um exagero, um a-mais do nosso corpo mas aqui, tão perto e tão quente, é como se fosse nossa carne também: agarrada (palpitante, latejando) pelos nossos dedos; calada (dormindo, confiante) encostada ao nosso suor.
(....)
Desde que estamos aqui, estudámos, experimentámos várias posições para nos ajeitarmos a dormir melhor: ora todos em fileira, ao lado uns dos outros, para a cabeceira da cama, ora distribuidos como agora, três para cima, dois para baixo, ou, então, com um dos miúdos (a Lina ou o Zé) atravessados a nossos pés. E havia, ainda, o problema da colocação ou das vizinhanças: eu e a Irene num lado e os miúdos noutro, ou nós no meio e eles um de cada lado, isto com insucessos, preferências, trambolhões cama abaixo, muitos pontapés, mijas, rixas, complicações de familia, favoritismos e ciumeiras e choros e berraria
às vezes, resolvidos em familia entre risos e lágrimas, bofetões, beijos; decomposturas, carícias leves... Também na cama as posições variavam conforme o frio ou o calor, conforme, principalmente, o frio ou o calor que fazia na cama, pois os cobertores, às vezes, eram convocados (um, ou dois) à pressa, num afã de salvação pública (nossa) e seguiam com destino incerto. Depois, não havia trapada pelas gavetas que chegasse para os substituir, e até jornais, são óptimos, ramalham duma maneira estranha, apreciada pelos vagabundos que têm sono e frio. A verdade é esta: o frio não entrava connosco!"
(Luiz Pacheco em "Comunidade", 1964; edição limitada em serigrafia deste texto com pinturas de Cruzeiro Seixas, Perve Global - Lda. 2007 (410 ex.), a ver em http://www.almedina.net/mall/almedina/Livros/indices/9780000060549.pdf)
7 comentários:
Que belo conto de Inverno!
... a verdade é uma: muito calor!
que...mas QUE!! lindO! :)
De arrepiar! Obrigado.
~CC~
Quem escreve assim não é analfabeto... num país de iliteracias.
É mesmo ... a literatura comestível!!!
Com a verdade, (em certa altura da vida), engana-nos.
O que é necessário fazer-se neste país, para dar condições e VIDA À CULTURA ???
Anda por aí espalhado este excerto do livro do Luis Pacheco... li e reli , só não sei é como é que aquela gente toda se dava numa tenda de campismo ?
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